24 de novembro de 2011

DA BELLE ÉPOQUE À ERA DOS JAZZ (Cont. III) - Arthur de Farias

Já que se falou nas típicas…

O Rio Grande do Sul ouvia muito tango. Muito. Nas cidades da fronteira com a Argentina e o Uruguai, então, não tinha nem graça. O processo se intensificaria nos anos de 1930, com as rádios El Mundo e Belgrano, argentinas e tangueiras, sendo tão ou mais escutadas nessas cidades do que as emissoras brasileiras. O futuro sambista Túlio Piva, por exemplo, morador da fronteiriça Santiago do Boqueirão, só ouvia emissoras portenhas. Radamés Gnattali lembrava claramente da década de 1920 na sua cidade: em Porto Alegre, só se tocava tango argentino. O samba estava restrito ao Rio.

Ainda haveria outros surtos tangueros nas décadas seguintes, mas esse primeiro foi talvez o mais importante. Ribombou no sul com força de trovoada, mas soou em todo o país: A Media LuzLa Cumparsita estavam entre as músicas mais tocadas no Brasil de 1927. No ano seguinte, emplacam da mesma forma Caminito, Che Papusa, Mano a Mano (olha lá embaixo) e Esta Noche Me Emborracho, sucessos de Carlos Gardel. No mesmo ano, também, se torna muito popular um dos primeiros tangos argentinos brasileiros (sic), composto em espanhol por Raul Roulien: Adiós Mis Farras. O primeiro havia sido escrito 10 anos antes, por Ernesto Nazareth: Nove de Julho (mais um lá embaixo).

Nenhum gênero internacional suplantava a popularidade do tango nesse momento no país. Até na Bahia – e Jorge Amado que o diga – se tocava e dançava o ritmo portenho. Octavio Dutra– sempre ele – chegou a escrever arranjos para tangos de Gardel, para serem tocados com seu regional. E compôs também mais de um tango argentino.

O surto era tão generalizado que, por toda a década de 1920, as grandes atrações dos cabarés gaúchos eram típicas de tango, e não a música brasileira, cubana ou americana tocada por orquestras, jazz-bands ou seja-lá-o-que-for. Sim: muitas casas noturnas, confeitarias e cafés tinham duas bandas contratadas, uma delas só para tangos e milongas.

Os turunas pernambucanos usavam nomes de bichos e foram influência
para várias "regionais" que viriam depois. Foto: Reprodução
E até se dançavam maxixes, mas não pegava bem. Mesmo que já em 1898 o Correio do Povo já registrasse o gênero tocado com cavaquinhos, violões e pandeiros, ainda era música de negros, e suas coreografias só eram permitidas para eles. As exceções eram o Carnaval ou as casas mais do que suspeitas. Tá lá no jornal A Federação, já em 1906: O maxixe é tudo que há de mais puro brasileiro. É a nossa dansa popular. Está bem claro que não é dansado nos salões da melhor roda social; não é uma dansa distincta. Mas é sempre dansada nos cafés-concertos, sociedades de rapazes e em todas as festas populares.

Pra que se tenha uma ideia da segregação que sofriam no estado os ritmos negros cariocas então popularíssimos no resto do país, é demonstrativo o exemplo, mais uma vez, de Octavio Dutra, o principal compositor dessa cena. Das 482 músicas que compôs entre 1900 e 1937, míseras 16 eram sambas e outras duas, sambas-canções. Um retrato do contexto muito peculiar em que viviam os gaúchos, desde então se sentindo diferentes do resto do seu próprio país. Maxixes, lundus e, logo depois, os primeiros sambas, eram coisa de negros e pronto. Quem comprava discos não comprava esses discos. Muitos deles, as fábricas nem mandavam pras lojas do sul.

Mais um dado para defender a tese: nas pioneiras gravações dos Discos Rio-grandenses, em 1913, as 102 músicas registradas em Porto Alegre são 16 polcas, 15 valsas, 14 schottischs, 11 modinhas, 11 dobrados e nenhum samba ou maxixe. Por essas e outras, depois de conquistarem os cabarés e dancings, as típicas permaneceriam em seus palcos pelos 50 anos seguintes.

Por mais de meio século, umas épocas mais, outras menos, todo mundo em Porto Alegre sabia ao menos os passos básicos do tango. Como prova definitiva de que desde a década de 1910 o ritmo já era incorporadamente gaúcho, há uma notícia publicada no Correio do Povo, em 1914. Nela, um jornalista não identificado fala com curiosidade e espanto sobre a polêmica que o excesso de voluptuosidade nas coreografias do ritmo estava despertando na Europa. O texto se espantava justamente com o choque dos europeus perante algo que para os leitores gaúchos já era tão corriqueiro. E dançado até no carnaval.

Se o samba custou a emplacar – e o maxixe, ao que parece, nunca o fez – a avassaladora febre nordestina que se espalhou pelo Brasil nos primeiros anos do século XX pegou forte na gauchada. O micróbio da tal enfermidade se chamava Turunas Pernambucanos, grupo que havia descido do Recife para encantar o público gaúcho em 1924. Até o convicto chorão Octavio Dutra compôs uma canção sertaneja chamada justamente… Sertaneja, que foi sucesso num carnaval. E não foi só: aproveitou a passagem dos Turunas para compor umas coisinhas em parceria com o saxofonista Ratinho, uma das estrelas do grupo (o qual tinha também o violonista Jararaca, com quem Ratinho formaria depois a dupla Jararaca & Ratinho).

Mas não é espantoso que os chorões daqui se deixassem influenciar pelos pernambucanos. Afinal, no Rio, três anos depois, um novo grupo nos mesmos moldes, os Turunas da Mauriceia, motivaria o surgimento de discípulos como o Bando de Tangarás – que reunia, entre outros, Noel Rosa, Almirante e João de Barro. E o curioso é que eles já eram produto da influência dos citados Turunas Pernambucanos. Que, por sua vez, tinham nascido totalmente influenciados por um grupo… carioca! Os Oito Batutas, de Donga e Pixinguinha, que havia passado por Pernambuco em 1922. Oito Batutas que, por sua vez, fora criado por inspiração no Grupo de Caxangá, liderado pelo violonista pernambucano João Pernambuco. Isso é que é globalização…

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Foi na década de 1910 que começaram a aparecer no Brasil os primeiros ritmos americanos: o charleston, o ragtime, o fox-trot e os hoje esquecidos shimmy, cake-walk, one-step e black-bottom. Era o primeiro ataque em massa da cultura norte-americana, que, a partir daí, a cada 30 anos, apocalípticos acreditam que ela vai dizimar nossa “frágil” nacionalidade. Para o amigo ter uma ideia da velocidade dessa primeira invasão, entre 1903 e 1914 foram gravados no Brasil apenas sete discos com música estadunidense. Nos 12 anos seguintes, entre 1915 e 1927, esse número sobe nada menos que 2.500%: 182 gravações!

Os ritmos mais populares eram o one-step e o charleston, logo seguidos pelo fox-trot e o ragtime. Todos, já nos anos de 1920, constando no repertório de qualquer encontro dançante que se prezasse e compostos com absoluta naturalidade por autores gaúchos.

A primeira grande mudança foi na formação instrumental dos grupos de música popular. O gênero jazz não tinha dados as caras, mas a palavra jazz se tornaria rapidamente o substantivo que designaria um conjunto de instrumentistas formado por sopros e uma cozinha rítmica composta por bateria, banjo, violão e/ou piano, contrabaixo ou tuba.

Em Porto Alegre, não levaria nem meia década pra coisa pegar fogo e os jazz reinarem absolutos, soterrando os formatos até então consagrados de banda ou regional. Eram as estrelas das gravações, dos bailes, das festas. Nada era mais chique do que montar uma bandinha e chamá-la de …jazz.

Tocavam de tudo: todos esses ritmos americanos aí de cima, maxixes, polcas, schottischs,habaneras. Na verdade, só não rolava era… jazz.

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Formação original d'Os Oiro Batutas, quando tocava música nordestina
e, em seguida, viraria regional de choro e samba. Foto: Reprodução.
Tudo começa no mesmo 1923 em que Louis Armstrong gravava seu primeiro disco com a King Oliver´s Jazz Band, e apenas cinco anos depois da primeira gravação de jazz da história, da Original Dixieland Jass Band. A invasão começa quando o flautista Albino Rosa reúne uma turma de amigos músicos pra fundar um regional. O próprio termo regional, registre-se, era novidade, criado por grupos que tocavam também choro, mas estavam mergulhados na citada febre nordestina – daí o nome: regional.

Inspirado no sucesso carnavalesco Espia Só, de (adivinhem?) Octavio Dutra, Albino batiza seu sexteto de Regional Espia Só. Além dele, tocando flauta, tinha Binga no violão, Veridiano Farias no violino, Severiano Severo de Souza no ganzá e Herald Alves na caixa. Pra completar o time, um cara que tocava cavaquinho, banjo e uma espécie de bandolim-criado-a-Toddy chamado bandola. O nome do rapaz era Marino dos Santos. Guardem.

Bandolim e bandola. Foto: Reprodução
Albino costumava trocar uma ideia com os marinheiros que, como ele, frequentavam as casas mais suspeitas dos arredores do cais do porto. Os caras navegavam pelos mares do mundo, portanto, sempre tinham novidades. Como, por exemplo, a mudança acontecida com os Oito Batutas: a banda liderada por Pixinguinha nascera grupo de música nordestina, depois virara regional de choro e samba e agora era… jazz-band. A novidade estava ligada à sua estada na Europa, no começo de 1922: eles agora tinham dois saxofones, trombone, trompete (ou, como se dizia então, pistão), banjo, piano, bateria e dois percussionistas! E, na sua esteira, estavam pipocando no Rio de Janeiro grupos como a pioneira Jazz Band Brasil-America (que leva a expressão jazz-band pela primeira vez a um disco, com o fox-trot Vênus). A qual se segue a Brazilian Jazz ou a Jazz-Band Beira-Mar Cassino – em ambas, tocava o já citado Augusto Vasseur.

Tudo parecia muito interessante, mas ainda distante da realidade local. E o Espia Só seguia regional, defendendo uns cobres em serestas e ensaios de sociedades carnavalescas.

Os Oito Batutas, agora transformados em jazz band. Foto: Reprodução
Só que, em setembro de 1927, Pixinguinha em carne e osso – e acompanhado de seus batutas! – é a grande estrela da inauguração da fábrica porto-alegrense da Companhia Cervejaria Brahma. O grupo, versão jazz-band, estava então no auge da popularidade, tocando sambas, maxixes, choros e algumas resistentes emboladas de seus tempos sertanejos. Os shows na Brahma eram a culminância de uma excursão que percorria o sul do país. E além de tocar na inauguração do belíssimo prédio – que, 75 anos depois, se transformaria no Shopping Total –, fizeram mais 20 apresentações na Exposição do Parque do Menino Deus.

Turunas da Mauriceia. Foto: Reprodução
Muito mais do que havia acontecido com os Turunas Pernambucanos, meia década antes, a estada gaúcha dos Batutas foi decisiva pros rumos que a música da cidade iria tomar nos anos seguintes. Também pudera: não pouparam esforços em se enturmar: tomavam todas com o pessoal e Pixinguinha em pessoa, o sujeito que definiu para sempre o que seria o choro, o compositor mais importante do país… encomendou músicas para Octavio Dutra! Sabe lá o que é isso? Como se não bastasse, passou longas tardes na Confeitaria Central, tentando convencer o pianista da casa, Paulo Coelho, a ir embora com ele pro Rio. Pra culminar, numa janta oferecida pelo Regional Espia Só, piraram definitivamente o cabeção da turma, enchendo os caras de ideias sobre jazz bands.

Albino, que só sabia daquele som por ouvir contar, pirou. Afinal, era seu ídolo Pixinguinha – em pessoa – que o aconselhava a mudar o nome do grupo, tirando o regional e adotando o jazz. Evidentemente, também precisariam trocar a instrumentação e o repertório.

Isso era o de menos.

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Clica aqui pra ver e ouvir aquele que a cada dia canta melhor, el maximo zorzal, el mudo… Carlos Gardel. Em, talvez, sua obra-prima, Mano a Mano.

Aqui pra ver a incansável pianista (e pesquisadora) gaúcha Olinda Alessandrini tocando o primeiro tango argentino composto no Brasil, Nove de Julho, do Ernesto Nazareth.

Um raríssimo filmete do Bando dos Tangarás, com Noel Rosa e tudo.

Um encantador semidocumentário sobre o Charleston (e com o genial violonista cigano Django Rheinhart e sua banda do Hot Club de Paris na trilha)

Por fim, um fox americano dos anos 1920.

Extraído do sítio Sul21

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