3 de novembro de 2011

O QUE HÁ PARA SER LIDO - Mauro Malin

Affonso Romano de Sant’Anna escreveu no suplemento “Sabático”, do Estado de S.Paulo (“O leitor, onde está o leitor?”, 15/10), que “a leitura é o verdadeiro pré-sal”. Advertência preciosa, mas vai se chocar com um contexto adverso. Há 138 anos, Machado de Assis (Instinto de Nacionalidade) constatava que o Brasil era “um país que apenas entra na primeira mocidade, e esta ainda não nutrida de sólidos estudos”. Talvez por isso ele tenha feito Brás Cubas dirigir “Ao leitor”, no prólogo de suas Memórias Póstumas, o prognóstico:

“O que não admira, nem provavelmente consternará, é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte e, quando muito, dez.”

A situação dos brasileiros melhorou? Muito. O problema é o ponto muito recuado de onde partiram os avanços “civilizatórios”.

Hoje, discute-se se há no país livros demais, editoras demais. A Record tem um galpão com 2 milhões de exemplares recolhidos de pontos de venda. Affonso Romano de Sant’Anna põe a questão de cabeça para cima: o que há é leitores de menos. A migração da marquetologia para o ramo editorial sofre e sofrerá sempre com a disjuntiva educacional/cultural: qual será no Brasil a correlação entre consumo de produtos como lava-roupas, ou televisores de plasma, ou automóveis usados, de um lado, e livros, de outro?

O “crescimento do consumo” pode causar equívocos. Para o indivíduo “típico” dos grandes grupos humanos, é mais fácil acumular poder de compra do que conhecimento. Sem algum conhecimento não é possível saber o que se pode conhecer nos livros. Mas saber que há uma pechincha nas Casas Bahia, ou um feirão de automóveis no fim de semana, não requer esforço.

Não é fácil ser ignorante

O saudoso matemático e estatístico Wilton Bussab, professor da FGV-SP, deixou gravado um depoimento com esta conclusão magistral: para ser ignorante, uma pessoa precisa estudar muito; senão, é só inocente.

Se as tendências de consumo, mesmo quando medidas com alguma seriedade, não permitem ter certeza do tamanho da produção “ideal” para determinado segmento ou nicho, menos ainda no caso de produtos cuja utilidade e desejabilidade pertencem ao terreno do completo subjetivismo.

Acertar o tamanho de uma edição de livros não é, portanto, tarefa fácil. Na imensa maioria dos casos sobram livros nas livrarias, por sinal tradicionalmente poucas no país. Essa premissa não se aplica aos livros didáticos que têm mercado mais ou menos delimitado, ou mesmo cativo (comprados por governos).

O livro sem papel

Mas tudo isso vai ficar para trás. As edições em papel serão feitas sob encomenda (essa modalidade, que existe há uma boa dezena de anos, ainda não se disseminou). Não haverá mais custos com papel, impressão, distribuição (hoje, nos canais convencionais, mais cara do que a produção do livro ou de revista de pequena tiragem), nem com a manutenção de depósitos próprios ou alugados.

Proporções notáveis do patrimônio natural poderão, em princípio, ser preservadas. Quer dizer, se os fabricantes de papel não criarem novos mercados para seus produtos.

O governo não precisou subsidiar a compra de televisores pela população mais pobre. Bastou controlar a inflação. Depois do Plano Real, a posse de aparelhos de TV se universalizou no país.

Põe a banda que o povo se vira

O mesmo acontecerá com os aparelhos digitais de leitura (“leitores” somos nós, não os aparelhos), já acontece com notebooks e tabuletas. O povo se vira para comprar e isso retira do processo de distribuição custos monumentais. Por isso a banda larga é tão importante. É um investimento muito grande, não funciona na base do “mercado formiguinha”.

É significativo que uma empresa como a Amazon, que deu um banho de logística para vender livros e outros produtos materializados, tenha criado também um aparelho digital de leitura tão sensacional como o Kindle.

Ainda se trata dos primórdios dessa modalidade, o livro dito eletrônico, mas é o suficiente para indicar uma tendência irresistível. Aproveito para fazer um comercial gratuito: Luciano Martins Costa, jornalista de longo curso e escritor, titular do programa de rádio deste Observatório da Imprensa, criou uma editora digital, a Biblos. Já acumula uma experiência interessante.

Daqui a alguns anos, os atuais aparelhos de leitura parecerão canhestros. É o que acontece em todas as revoluções tecnológicas: prometem muito mais do que conseguem entregar no início e acabam resultando em algo muito além do sonhado (lei de Arthur Clarke). Mas dá para imaginar a emoção das pessoas que, por exemplo, ficaram pela primeira vez diante de uma telinha de televisão, mesmo tão pobrezinha, desenxabida?

Livro vs. multitarefa

Agora, vamos ao principal. Por que ler livros, em papel ou em aparelho de leitura, e não em computador ou tabuleta? Porque livro é para ser lido exclusivamente. Em silêncio ou em voz alta (para cegos ou, como fazia Antônio Houaiss na juventude, em Copacabana, para operários estrangeiros ou analfabetos).

Não é para ser lido ouvindo música (recomendação de Chico Buarque, que também evita o inverso: ouvir música fazendo outra coisa ao mesmo tempo), conferindo correio eletrônico, navegando em sites de notícias, com dispositivo de mensagem instantânea piscando ou Skype aberto etc. etc.

É a grande vantagem do livro (pode ser livro de imagens, não importa). A pessoa se concentra. O pensamento pode viajar? Pode. Deve. Mas o ponto de partida é uma criação intelectual orgânica, com ritmo, sintaxe, estética, estilo. Jornal e revista também são assim.

Livro não é para ser lido no computador, em primeiro lugar porque ler alguma coisa muito extensa no computador é uma experiência fisicamente medonha. A tabuleta resolve esse problema. Mas não o da concentração. Pode ser tão dispersiva quanto o computador. E, até o momento, não oferece a confortável opção da tela sem luz própria, como o Kindle.

Os seres humanos não são obrigados a pagar tributo a uma multifuncionalidade geralmente sem sentido. O cérebro é um só, ainda que os sentidos sejam vários. É preciso entender que a indústria cristaliza padrões a cada etapa da evolução tecnológica, mas não necessariamente esses padrões são os únicos possíveis, ou os melhores.

A perfeição é uma meta

O computador pessoal é uma maravilha, pelo universo de possibilidades de trabalho, estudo, diversão, principalmente comunicação que abriu quando passou a ser ligado em rede, mas está muito longe de ser um produto “perfeito” (algo que não existe e não existirá nunca). Tem muita coisa burra. Por dificuldade em alcançar novo patamar, por desinteresse de quem está vendendo muito bem.

No Ocidente se come com garfo e faca (nem todo mundo...). No Oriente, com pauzinhos. Alguém pode dizer que um método seja melhor do que o outro? A escrita “certa” é da esquerda para a direita ou vice-versa? É na horizontal ou na vertical?

Os veículos automotores, que revolucionaram os transportes e as comunicações, provocaram 100 milhões de mortes em seu primeiro século de utilização. A lata de alimentos foi inventada no fim do século 18, mas o abridor portátil de latas, uma simples lâmina com uma alavanca, só na segunda metade do século 19. Latas eram abertas com facas, machados, no faroeste até com tiros.

Assim caminha a inteligência coletiva da humanidade. E o Eclesiastes, sabiamente citado por Machado de Assis como o melhor dos repositórios de sabedoria, garante que “não há nada de novo sob o sol”.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa