27 de março de 2012

UM ROTEIRO PELO RIO DE JANEIRO DOS ESCRAVOS - Rogério Jordão



A partir da leitura do livro "A vida dos escravos no Rio de Janeiro", 1808-1850", da historiadora norte-americana Mary C. Karasch, é possível reconstruir um roteiro turístico-histórico pelo Rio de Janeiro dos escravos. Pode-se sair deste breve roteiro com a impressão de que as pessoas teriam muito a ganhar se fossem oferecidos nos espaços públicos (via monumentos, placas, exposições criativas) resquícios mais amplos (e generosos) de nossa história. Na ilustração, o Campo de Santana em 1818, segundo a concepção de Franz Josef Frühbeck. O artigo é de Rogério Jordão. Publicado originalmente no blog Entrementes

Li recentemente o ótimo livro “A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850”, da historiadora norte-americana Mary C. Karasch. Ela esmiúça a vida dos escravos no Rio na primeira metade do século XIX, apoiada em extensa documentação. Muito interessante.

A partir desta leitura, elaborei um breve roteiro turístico-histórico. O roteiro:

Passeio 1: o Valongo

Entre 1800 e 1850 passaram pelo mercado de escravos do Valongo cerca de 1 milhão de africanos, provenientes principalmente de Angola, Congo e Moçambique. O mercado, na verdade um conjunto de casas ou “armazéns”, ficava num vale entre os morros da Conceição e o do Livramento, na região do cais (10 minutos a pé da atual Praça Mauá).

No local descrito pela historiadora há hoje, na subida para o Morro da Conceição, a ladeira do Valongo (uma travessa estreita que sai da Rua Camerino). Subindo a ladeira – e após passar por um conjunto de casebres — você tem uma vista do vale e é possível imaginar, com algum esforço, como era a área 200 anos atrás.

No cume do Morro há uma unidade do Exército e um observatório astronômico da UFRJ. Não há referência ao antigo mercado – nenhuma placa, nada. A única lembrança histórica visível encontra-se materializada na praça abaixo, em um obelisco, onde lê-se que o “Cais do Valongo” foi reformado nos idos de 1840 para a recepção a uma Imperatriz que casar-se-ia com D. Pedro II. E é tudo.

E do lado oposto, subindo-se a ladeira do Livramento, dominada por casarões do início do século XX, muitos dos quais transformados em cortiços, chega-se a uma torre de transmissões da Embratel. De lá é possível avistar, virando-se as costas para a região do Cais, a Central do Brasil e o Campo de Santana.

Passeio 2: o Campo de Santana

Em seu livro Karasch diz que o Campo de Santana (na região central, atual Praça da República) foi um ponto importante para a vida social dos escravos, que para lá iam, particularmente aos domingos, em suas horas de liberdade (outro local de reuniões era a Praça Tiradentes, não muito longe dali). Eram ocasiões festivas, com música e dança. A historiadora reproduz a descrição de um desses momentos feita por um mercador inglês chamado Robertson, que em 1808 achou que “não havia nada igual fora da África”.

Escreveu o viajante: 
“Em frente avançavam os grupos das várias nações africanas, para o campo de Sant´Ana, o teatro de destino da festança e algazarra. Ali estavam os nativos de Moçambique e Quilumana, de Cabinda, Luanda, Benguela e Angola (…). A densa população do campo de Sant’Ana estava subdividida em círculos amplos, formados cada um por trezentos a quatrocentros negros, homens e mulheres. Dentro desses círculos, os dançarinos moviam-se ao som da música que também estava ali estacionada; e não sei qual a mais admirável, se a energia dos dançarinos, ou a dos músicos”. (Karasch, pág 326).
Posteriormente, as autoridades proibiriam as grandes concentrações de escravos, consideradas “perturbações da ordem pública”, nas palavras de Karasch (embora, frise a historiadora, a proibição não tenha surtido totalmente efeito, tendo os encontros perseverado).

Fui ao Campo de Santana para tentar identificar algum rastro deste passado. Ficava por lá, também, um dos principais pelourinhos da cidade. Era ainda local para vendas públicas de escravos. Mas, mesmo com estes elementos significativos – e assim como no Valongo –, não há pistas.

Ponto de passagem, a algumas centenas de metros da Central do Brasil, de onde partem os trens para as zonas oeste e norte da cidade, chama a atenção no parque, a despeito de seus ares decadentes, suas belas árvores e capivaras, que andam a solta. É certo que o local foi palco de grandes “momentos históricos”, nos dizeres da Wikipedia, como a coroação de D Pedro I e a Proclamação da República, conforme nos lembra, também, um desgastado monumento eregido no centro do Campo. Mas creio que não faria falta ao menos uma plaquinha no local, algo como: “E aqui reuniam-se na primeira metade do século XIX os escravos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em seus momentos de liberdade, aos domingos…”, lembrando, talvez, como aponta Karasch, que quase a metade da população da cidade no período era de cativos, em grande parte africanos, que trouxeram consigo diversas culturas, ricas em línguas (ioruba, kikongo, quimbundo), hábitos, crenças (diferentes religiões), culinária (pirão, angu), musicalidade (tambores de diversos tipos, marimbas) , sabedorias etc.

Passeio 3: Igreja Nossa Senhora do Rosário

A Igreja Nossa Senhora do Rosário (metrô Uruguaiana) é uma das poucas construídas e fundadas na cidade por irmandades de escravos e libertos. No fundo desta igreja funciona atualmente o Museu do Negro.

Ocupando um corredor e uma sala, o Museu é acanhado, com imagens de santos (como a de São Benedito, depositário de bilhetes pedindo graças), um busto de Zumbi dos Palmares (que recebe homenagens dos devotos), um pequeno mapa com os fluxos do tráfico negreiro da África para o Brasil a partir do século XVII, fotos de procissões da Irmandade nos anos 1950 (curiosamente a maioria dos que aparecem nelas é de brancos), uma palmatória de madeira, além de retratos de pessoas negras de destaque, como o de um Marechal do Exército (que agora me escapa o nome) e o da ex-governadora Benedita da Silva.

Já a Igreja propriamente dita é toda reformada, pois pegou fogo nos anos 1960, informa uma tabuleta de metal na entrada.

E na sala escura e quente da nave lateral onde queimam-se as velas, há duas reproduções de pinturas com homens trabalhando o que parece ser uma moenda de cana; é difícil distinguir por conta do negrume. Dali é possível ver por uma fresta a calçada do lado de fora, onde, ao alcance dos braços, uma mulher toda de branco monta diariamente uma tenda para consultas – quase ouve-se sua voz lá de dentro.

Pode-se sair deste breve roteiro com a impressão de que as pessoas teriam muito a ganhar se fossem oferecidos nos espaços públicos (via monumentos, placas, exposições criativas) resquícios mais amplos (e generosos) de nossa história. Se, como já sugeriu o cientista político americano Benedict Anderson, as nações são “comunidades imaginadas”, é certo que o acesso a informações mais diversificadas nos estimularia a sonhá-las, quem sabe, em tons mais coloridos.


Extraído do sítio da Carta Maior

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