25 de março de 2012

LIVRO "ENFARTE CULTURAL" PROVOCA POLÊMICA NA ALEMANHA - Aya Bach e Augusto Valente



Quatro autores abalam o setor cultural, ao sugerirem fechamento de metade dos teatros e museus do país. Associações e artistas rebatem: submeter a arte às leis do mercado é matar a diversidade e a ousadia.

A tese central da publicação é ousada: uma superoferta de cultura subvencionada, em explosão desde a década de 1970, encontra interesse cada vez menor do público, além de bloquear o desenvolvimento de uma indústria cultura vital e dinâmica na Alemanha.

Dieter Haselbach, Armin Klein, Pius Knüsel e Stephan Opitz queriam "demolir o halo de santidade da cultura" e, no processo, desencadearam uma discussão acirrada. Pois era justamente essa a intenção, assegura Knüsel: o debate acalorado é bem-vindo.

O quarteto afirma em seu Der Kulturinfarkt (O enfarte cultural): "Quem critica a indústria e a política da cultura não é inimigo da arte. Pelo contrário: nosso intuito é libertá-la de seus supostos protetores, que a abraçam até que ela seja sufocada. As reivindicações não são novas, porém mais atuais do que nunca: mais espírito empreendedor, mais debate sobre as necessidades do público, menos fantasias de onipotência. E a admissão de que o mundo não irá se curar através da arte".

Os autores (da esq. para a dir.): Dieter Haselbach, Pius Knüsel, Stephan Opitz, Armin Klein. 
Subsídio ou investimento

Como seria de esperar, a maior parte da crítica vem dos que são criticados no livro: as instituições culturais – diretores de museus, sociedades e organizações. O conselho Deutscher Kulturrat ressalva que uma redução do orçamento da cultura em 50% – uma das reivindicações dos quatro autores – não representaria qualquer alívio considerável para os cofres públicos.

A associação de teatros Deutscher Bühnenverein também argumenta que nenhuma cidade, na qual um teatro venha a ser fechado, aplicaria os subsídios correspondentes na cultura alternativa ou na casa de teatros vizinha. Além disso, afirma a organização, não se pode "impingir" sobre todo o setor cultural o princípio de oferta e demanda próprio à economia de mercado. Pois um mercado de arte é baseado no acúmulo de propriedade, ao contrário das ofertas de teatro e concertos, sublinha a associação.

Os autores de Enfarte cultural designam como "subsídios", as verbas que fluem para o incentivo à cultura. Isso faz pensar em desperdício do dinheiro dos contribuintes, soando como um grito de guerra que não procede neste contexto. Não seria mais acertado falar em "investimento"?

Verbas para a cultura não são automaticamente sinônimo de bilhões de impostos desperdiçados, mas antes somas relativamente modestas, que possibilitam debates abertos dentro de uma democracia, fortalecendo a reflexão e a capacidade crítica. Na Alemanha, menos de 2% das verbas públicas são dedicadas à cultura, cerca de 10 euros mensais per capita.

"Superpotência mundial"

Essa quantia é empregada para que a cultura não chegue apenas à elite abastada, como insinua o quarteto de autores. A cultura existe, de fato, em todo o país, ou seja, onde as pessoas estão. E ela trata de seus problemas.

Capa de "Der Kulturinfarkt" 
Isso fica especialmente claro na paisagem teatral, a qual se estende por todo o território do país. Aqui, os artistas não se dedicam apenas ao Fausto de Goethe, ou à Flauta Mágica de Mozart: há muito o teatro passou a se ocupar de temas e debates atuais – de radicalismo de direita e xenofobia, de energia nuclear e crise financeira. As verbas empregadas na cultura, na atividade intelectual, acabam por beneficiar os cidadãos de uma região e, por fim, a sociedade como um todo.

Em outros países, os agentes culturais só podem sonhar com situação semelhante. "No campo da cultura, a Alemanha é a superpotência mundial", afirma o diretor sueco Staffan Valdemar Holm. Ainda jovem, ele costumava vir à Alemanha, fascinado por sua cena teatral. Em sua opinião, o grande diferencial é o teatro do país ser descentralizado, ancorado nas diferentes regiões e cidades. Mesmo na rica Suécia, a situação é diferente: o teatro se concentra nas cidades Estocolmo, Göteborg e Malmö, e o resto do país tem que se contentar com bem pouco.

Essa especificidade da Alemanha tem também suas razões históricas. Antigamente, mesmo o príncipe menos importante insistia em manter seu próprio teatro. A grosso modo, essa estrutura se perpetuou até hoje, para o bem da população, que pode se beneficiar da cultura mesmo nos menores lugarejos.

Defesa da diversidade

Caso metade dos teatros da Alemanha fossem fechados, como pleiteiam os autores de Der Kulturinfarkt, perderia-se exatamente aquilo que caracteriza a cena teatral alemã, ou seja, sua "incomparável diversidade", alerta Holm.

Hoje ele vive na Alemanha e é diretor geral do Teatro Municipal de Düsseldorf. Holm não concorda com a tese de que os chamados "subsídios" sufocam a criatividade. "Mas é exatamente assim que os experimentos se tornam possíveis. Todo empresário sabe que é preciso investir em criatividade", afirma.

Também em relação aos Estados Unidos, onde tem atuado frequentemente, ele considera a posição da Alemanha muito mais vantajosa. "Os EUA como um todo não têm para oferecer o que a Alemanha consegue em um dia. Lá, só os grandes teatros de prestígio, como o Metropolitan, é que funcionam. Mas mesmo uma metrópole internacional como Nova York não consegue apresentar um Shakespeare decente", completa.

O crítico de teatro e tradutor romeno Victor Marian Scoradet louva o incentivo aos dramaturgos na Alemanha. Em 2009, ele recebeu a Medalha Goethe de Weimar por seu trabalho desbravador. Há muito Scoradet lamenta que os teatros da Romênia tenham negligenciado o fomento dos próprios autores.

"Os dramaturgos alemães, em contraste, são patrocinados e podem se permitir enfrentar todo tipo de riscos. Por isso ousam muito. Essa ousadia eu considero um exemplo para os autores de um país de passado totalitário", comenta Scoradet.

Implicações políticas

Teatro HAU de Berlin é famoso por projetos ousados 
Também nos países vizinhos abastados, a arte enfrenta circunstâncias bem mais severas do que na Alemanha. Na Holanda, as verbas para o teatro foram reduzidas a tal ponto que os artistas voltam as costas ao país e procuram a Alemanha. Este é o caso de Annemie Vanackere, que em setembro próximo assume a direção geral do teatro Hebbel am Ufer (HAU), em Berlim.

Nascida na Bélgica, há muito ela trabalha na Holanda. Lá "a coisa vem caindo morro abaixo nos últimos anos", constata. Segundo seu diagnóstico, a maior parte da culpa cabe ao "clima político", que vem "constantemente obrigando a arte a defender seu direito de existir".

Especialmente alarmante, do ponto de vista de Vanackere, é a resistência do partido populista de direita PV "contra tudo o que seja supostamente 'de esquerda' ou 'elitista', tornando pura e simplesmente impossível um debate sobre o significado social da arte".

Na Alemanha, o debate apenas começou. Quais serão suas consequências? Cabe observar.

Extraído do sítio da Deutsche Welle

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