12 de dezembro de 2012

CIDADE DOS LIVROS - Mario Vargas Llosa


Há cerca de 20 anos ouvi a agente literária e matriarca dos escritores, Carmen Balcells, falar de um projeto fabuloso relacionado com Barcelona e os livros. Nos anos seguintes ela continuou promovendo sua ideia e, enquanto a refinava e aperfeiçoava e ao mesmo tempo, utilizando todas as artes e técnicas de que era capaz (e que são quase infinitas), procurava convencer as autoridades da Generalitat [governo, em catalão] a implementá-lo.

Seu projeto era transformar todos os antigos quartéis da Ciudad Condal em Arquivos e Bibliotecas de Escritores. Como nos anos 1970 Barcelona foi a capital do boom e terra privilegiada de encontros de escritores latino-americanos e espanhóis, Carmen desejava que os primeiros arquivos e bibliotecas criados nas antigas casernas fossem os de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e outros, e pouco a pouco seriam acrescentados muitos outros, da Espanha, da Europa e do mundo todo. Em alguns anos (10, 20, ou 50), Barcelona iria se transformar numa esplêndida Cidade dos Livros, onde investigadores, bibliófilos e leitores dos cinco continentes se congregariam para consultar, ler e participar de seminários e cursos sobre toda a literatura contemporânea.

As autoridades catalãs não devem ter sido muito receptivas ao projeto porque, no decorrer dos anos, Carmen Balcells referiu-se cada vez menos ao assunto até que um dia desistiu do seu sonho, por considerá-lo impossível de realizar.

Atmosfera agradável

O que ninguém podia prever é que, anos depois, um projeto equivalente, embora de proporções menos gigantescas, começaria a germinar do outro lado do oceano, na capital do México, graças ao empenho de uma matriarca mexicana chamada Consuelo Sáizar Guerrero, tão iluminada e pragmática como Carmen Balcells (talvez menos imponente). Mas desta vez o projeto se tornaria realidade, transformando a capital mexicana na sede da mais bela, original e criativa biblioteca do século 21: La Ciudad de los Libros (A Cidade dos Livros).

A Cidade, um espaço imenso e maravilhoso, é constituída de pátios, jardins e espaços onde foram reunidas as bibliotecas particulares de diversos escritores mexicanos: José Luis Martínez, Antonio Castro Leal, Jaime García Terrés, Alí Chumacero e Carlos Monsiváis, que somam, juntas, cerca de 350 mil volumes.

Cada biblioteca foi confiada a um grupo de arquitetos, artistas e decoradores que reconstruíram e organizaram as diferentes coleções respeitando a personalidade, os gostos, as manias, as fantasias e as ideias de seus antigos proprietários. Ao mesmo tempo, procurando facilitar ao máximo o acesso aos livros e o conforto dos leitores. Não exagero quando afirmo que todos esses edifícios – muito diferentes um do outro – são criações onde o bom gosto, a funcionalidade e a atmosfera agradável estimulam de modo extraordinário qualquer intelectual. Sei por experiência própria. Passei a vida lendo e escrevendo nas bibliotecas de todas as cidades em que vivi e – com exceção talvez da antiga British Library, quando estava no Museu Britânico e antes de se transferir para o mastodonte de St. Pancras – não me lembro de sentir tanta vontade de escrever (e até viver ali) como nas várias bibliotecas da Cidade mexicana.

O auditório de Mil e Uma Noites

Nada mais correto que as bibliotecas sejam o retrato dos seus donos.

Basta comparar a ordem e o equilíbrio dos 70 mil volumes reunidos pelo historiador, ensaísta e crítico José Luis Martínez, com a atmosfera poética e eclética de García Terrés, ou a alegre desordem e a curiosidade desenfreada do sagaz cronista da cultura popular que foi Carlos Monsiváis. Na entrada do pavilhão que abriga a biblioteca de Monsiváis, o visitante recebe uma fotografia com os olhos sedutores de Maria Félix contendo uma carinhosa dedicatória que a diva fez ao cronista. O pintor Francisco Toledo estendeu no chão um tapete decorado com muitos gatos que Monsiváis criava e idealizou um painel delicado e exótico com as lombadas dos livros e uma cabeça do seu antigo dono, que os contempla nostalgicamente.

Além desses espaços há outros, como um dedicado às crianças, aos bebês. Sim, bebês, e o seu local chama-se Bebeteca! E também aos cegos (eufemisticamente batizado de Biblioteca Para Deficientes Visuais).

Tive vontade de dar uma rápida espiada na misteriosa Bebeteca. Mas, em vez disso, passei um bom tempo passeando pelo pavilhão infantil e me senti criança outra vez, entre aqueles jogos com personagens e lugares de contos de fadas e histórias de aventuras que astutamente despertam a curiosidade dos precoces leitores para os livros em que aqueles joguinhos se inspiram. Há também o auditório de Mil e Uma Noites para os contadores de histórias.

Enclave de civilização

Talvez o mais literário e original desses pavilhões seja a biblioteca para cegos. A música ali é tão importante como no belo romance de Bruce Chatwin, The Songlines, onde ele descreveu o mundo antigo dos aborígines australianos como um fantástico lugar onde as fronteiras entre as diferentes etnias e comunidades não eram geográficas, mas musicais. No interior dessa biblioteca, os espaços são delimitados por composições sonoras, cujos autores trabalharam na sua criação com assessoria dos próprios cegos. Guiados pela música, eles conseguem se dirigir às estantes ou locais de leitura que normalmente ocupam. A biblioteca não só dispõe de uma vasta coleção de obras em braile, mas também de tablets, fitas e discos de livros gravados que podem ser ouvidos em pequenas cabines individuais. Isolando esse local dos ruídos da rua há um jardim e um caminho em que os aromas de flores e das árvores guiam o usuário da porta de entrada da Cidade até à biblioteca, sem necessidade de guias.

Consuelo Sáizar Guerrero, presidente do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (Conaculta) não teria conseguido realizar esse formidável projeto cultural se não tivesse recebido o apoio (e os recursos) do governo do presidente de saída, Felipe Calderón. Como Calderón ousou enfrentar o dragão do narcotráfico, uma guerra que fez correr muito sangue e causou grande sofrimento em seu país, muitos julgam negativamente a sua gestão. Acho que ele foi corajoso, honrado e contribuiu decisivamente para a democratização do que é, hoje, o país de língua espanhola mais populoso do mundo. E não erro quando afirmo que, no decorrer do tempo, e uma vez desaparecida da memória histórica a violência destes últimos anos associada ao narcotráfico, a Cidade dos Livros continuará ali, intacta, atraindo cada vez mais leitores, como um enclave de civilização invulnerável à barbárie.

Mario Vargas Llosa é escritor, Prêmio Nobel de Literatura.

Extraído do sítio Observatório da Imprensa

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