11 de abril de 2012

KAFKA, CARTAS IMAGINÁRIAS - Jardel Dias Cavalcanti


Kafka é um dos maiores escritores do século XX (eu, pessoalmente, o considero o maior de todos). É impossível pensar de forma razoável sobre o século XX, sem ter-se em mente, bem interiorizado, o universo de romances como “A Metamorfose” e “O Processo”. Isso é apenas o começo, pois todos deveriam, a poder de chicote, ter que frequentar, ainda, suas fábulas, contos, sua "Carta ao Pai” e novelas.

Kafka não é apenas, como alguns pensam, um dos maiores pensadores do século – mas é, também, seu maior problema literário. Ao seu lado, evidentemente, temos Joyce e Beckett. É uma pena ver estudiosos se debruçando sobre aspectos sociológicos e/ou religiosos da obra de Kafka, perdendo, dessa forma, a oportunidade de decifrar, afinal, o que importa: os mistérios da surpreendente escrita kafkiana.

Tão importantes quanto sua própria obra literária, as cartas de Kafka despertam um fascínio enorme. São muito divulgadas, por exemplo, as cartas às duas mulheres com o qual manteve um relacionamento afetivo e com as quais chegou até o noivado: Milena e Felice. As cartas para Felice foram, inclusive, matéria do importante estudo “Um outro processo: as cartas de Kafka a Felice”, por Elias Canetti. 

Mas eis que aparece algo surpreendente: um romance espistolar, com cartas ficcionais de e para Kafka. Trata-se da obra Querido Franz, de Anna Bolecka, editado pela Record.

Formam um conjunto numeroso de cartas escritas por amigos e por namoradas-noivas de Kafka. Estas cartas formam um grande bloco de comunicação entre os personagens, tendo como figura central, evidentemente, Franz Kafka.

Estas cartas funcionam como matéria interpretativa do universo interior de Kafka. Ali estão expostos os problemas que todos os apaixonados pelo escritor conhecem: sua insegurança, sua infelicidade, sua vida absolutamente dedicada à escrita de sua obra, sua difícil relação com os outros humanos, sejam familiares ou amigos, etc. 

Numa das cartas de Milena (a segunda noiva), o infeliz autor de “A Metamorfose” é definido de forma muito clara, nos termos seguintes: “Este homem de quase quarenta anos, três vezes noivo de duas mulheres, escolhidas, como ele mesmo afirma, com plena consciência, não se casou até agora. Mora na casa dos pais, com os quais não se relaciona como um filho, e que nunca considerou como sua. Passa a maior parte do tempo em um escritório lúgubre, desprovido de qualquer calor indispensável à vida, sentado diante de um funcionário que lhe inspira medo. Não pertence, de verdade, a qualquer grupo religioso, porque considera a religião como uma das máscaras mais escuras com as quais os homens cobrem o rosto de Deus”.

Franz Kafka e Felice Braun
Também encontram-se as poéticas e desesperadas cartas de Felice, tentando entender, e ao mesmo tenpo criticar, as inseguranças de seu amado noivo. Numa dessas cartas ela diz:

“Escrevo esta carta, querido Franz, com a intenção de quebrar o silêncio entre nós. Eu disse muito, você, quase nada. Eu quero uma palavra, mas uma palavra em que eu possa me apoiar.

Você afirma que aquilo que não está claro entre nós me enche de medo e que este medo abrange tudo que eu não entendo em você: as suas excentricidades, o seu estilo de vida, o seu trabalho. Isto não é verdade, eu não tenho medo, pois sinto que tenho forças suficientes para suportar tudo isto e conduzir você para a clara luz do dia. Não, eu não tenho medo das dificuldades da convivência com você, mas de uma coisa eu tenho medo com certeza – do seu medo. Foi este medo que fez você, quando ainda era criança, fechar os olhos e bater a torto e a direito, sem reflexão. Com os olhos fechados, não podia ver quem você afastava de si. Era eu. Eu queria ajudá-lo. Era exatamente eu quem poderia liberar você do medo do seu pai e dos seus outros medos.

Eu quis ajudá-lo porque acreditei que você era fraco. Você me falou muito sobre a sua fraqueza.

Fiquei convencida de que você é forte e teimoso.

Você me dizia que queria viver no mundo da Verdade. Mas você mentia, afirmando que a mentira é a única arma do fraco.

Você falava do seu amor por mim – mas eu vi que você não é capaz de amar nem a si próprio.

Você me disse uma vez que eu estou do lado do mundo que distribui os golpes e fere os outros. Você tem pavor de ferimentos, mas veja o que você faz comigo. No início eu pensava que era o objetivo que você queria alcançar. Agora entendi que eu nunca fui um objetivo, mas um caminho de fuga. Eu era para você mais do que um dos meios de se libertar da armadilha que você, Franz, considera a vida.

Eu até poderia conformar-me com isto, toda a ajuda que se possa dar ao outro é boa, mas em pouco tempo você passou a me ver como uma nova armadilha, possivelmente até mais terrível que todas as outras. Que mulher poderia aceitar algo assim! Diga-me você mesmo.

Perdemos nossa unidade, disto eu tenho certeza, apenas não sei onde procurá-la, e se algum dia a sua descoberta será possível.

Na noite passada, durante um sonho, senti algo desta unidade perdida que tínhamos. Sonhei que estava numa floresta. Andava entre velhas árvores, com mais de trezentos anos; hoje não há mais florestas assim, mas esta parecia ser de um passado pré-histórico, dos tempos em que éramos felizes. Finalmente cheguei a uma enorme clareira aquecida pelo sol.

Senti muito cansaço, de modo que me deitei na relva macia. No sonho, vi as florezinhas do musgo e os insetos esgueirando-se entre as ervas. Da floresta saíram animais. Chegaram perto de mim e me cercavam, confiantes e amistosos. Havia entre eles cervos, gatos-do-mato, texugos, roedores, serpentes e pássaros. Juntavam-se aos pares, como na Arca de Noé, e eu lhes estendia os braços e me sentia segura, mas quando pensei que um dia teria que me levantar, senti um medo repentino.

Eu sabia que, ao ficar de pé, eu iria perder esta divina sensação da plenitude que me invadiu quando estava deitada, feliz, entre os animais. Acordei agitada por dois sentimentos contraditórios – o da saciedade e o da inquietude. Envio-lhe um beijo.”

Como se pode ver, Felicja tenta equacionar toda a problemática de sua relação com o escritor. O que é interessante perceber é que esta carta, embora ficcional, torna-se uma forma de entendimento da relação de Kafka com o mundo muito próxima às cartas verdadeiras trocadas pelo casal.

A reposta de Kafka a esta carta aparece da seguinte forma:

“Querida Felicja, o silêncio entre nós está preenchido até as bordas. Na verdade, não houve grandes mudanças. Eu converso com você sem palavras, à distância, e você, tão distante, está mais receptiva em relação a mim do que antes, quando nos olhávamos nos olhos. Eu me convenço de que não devo aproximar-me de você, porque você, ao me ver assim como só eu sei que sou, estaria pronta, por puro desespero, a chegar a atitudes extremas.(...)

Você sabe o que poderia significar o seu lindo sonho, em que você estava deitada na relva entre animais selvagens sentindo-se feliz?

Aquele que fica de pé – comanda, dá ordens, tem supremacia. Aquele que fica sentado – nem que seja no sofá da sala, permite que o mundo sinta o peso do seu corpo; embora não distribua golpes, achata, com seu peso, o inocente sofá.

Aquele que fica deitado, no entanto – com a cabeça aconchegada no suave musgo – não dá ordens, não exerce poder e não pesa sobre a terra.

Boa noite, minha pobre, pobre Felicja.”

Quem conhece o conteúdo das cartas de Kafka a Felice se sentirá em casa dentro deste livro, podendo desfrutar de uma forma de investigação que supera a crítica literária: a criação artística como forma de interpretação.

Para ir além.

Extraído do sítio Digestivo Cultural

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