Em 15 de junho de 1968, Clarice Lispector publicou em sua então coluna semanal no Jornal do Brasil uma crônica intitulada Pertencer. No texto, escreve sobre sua sensação de jamais pertencer a nada, a ninguém, e da radical solidão que era sua mais fiel companheira. Também fala do desejo de pertencer: “…pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho.”
No início do escrito anuncia que não exporá os motivos que a fizeram sentir-se não pertencendo desde o berço, mas ao final trai sua intenção e narra a história de sua origem, do desejo dos pais que lhe trouxe ao mundo. Viera por uma superstição da gente de sua época, segundo a qual o nascimento de um bebê poderia curar a enfermidade de uma mulher. Sua missão, no entanto, não vingou: a mãe não se curou, e desde então Clarice carregara consigo a marca culposa desse primeiro e retumbante fracasso.
Pertencer cativa pelas palavras de Clarice, a cuja sensibilidade e maestria no uso da linguagem é impossível ser indiferente. Mas também expõe a armadilha na qual o melancólico se coloca, e à qual se agarra como a sua própria vida, porque é ela que lhe dá sentido à vida: o amor que não foi. Mais que um enlutado, que resiste em aceitar a perda de um amor importante, o melancólico não consegue abrir mão de um amor que não existiu, um amor que foi promessa e não se cumpriu, por azar do destino que, se é que existe, não é mais que puro azar.
A solidão do melancólico, que tanto nos comove por tocar em nossa bem-camuflada solidão essencial – todos a experimentamos, já desde que saímos do útero materno – é uma falsa solidão: precisa estar sozinho para poder viver tranquilo seu amor perfeito, um amor idealizado que guarda a sete chaves das mazelas e imperfeições do amor de verdade, aquele que efetivamente acontece entre duas pessoas. Nenhum amor é bom o suficiente para o melancólico, que denuncia a hipocrisia e os arranhões do amor terreno para seguir gozando com seu amor limpo, puro, sem fissuras.
Clarice delata sua posição ao introduzir a história de sua chegada ao mundo: “no entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito”, e narra a fantasia – ou delírio? – que deu lugar a sua chegada. A pretensa beleza de seu mito de origem camufla a onipotente condição na qual se coloca, como aquela que teria o poder de evitar a morte do outro, e seu fracasso é apenas o avesso disso. Carrega essa culpa sem aventar a possibilidade do perdão – a si mesma e a seus pais, pelo desatinado desejo que a gerou -, aferrando-se ao desejo de ter cumprido a missão que aí, sim, a faria pertencer – a seus pais.
O que se esconde nessa fossa melancólica é que, desta forma, sempre pertenceu e segue pertencendo a seus pais: foi fruto de um fracasso deles, mas assim segue sendo deles; sua existência ainda se nutre do que a fez vir ao mundo. O melancólico oculta de si mesmo, com esse giro, o desejo imperioso de seguir sendo o que somos quando viemos ao mundo: objeto de um outro de quem nosso destino depende. Ele jamais está sozinho, pelo contrário, está sempre acompanhado pelo único mestre garantidamente imortal: a morte. Por medo de amar os vivos, ama quem já se foi, e seu desejo de morrer é para finalmente concretizar a perfeição de um amor silencioso, sem ruídos – e sem vida.
Clarice traiu-se mais uma vez nesse texto: no final das contas, ao expressar pelas palavras seu trânsito pelos meandros da não-pertença, acabou pertencendo, com alegria, à literatura brasileira. Assim como encontrou no Brasil um novo berço, estrangeiro a suas origens, fez sua a língua portuguesa e, com sua produção, criou um lugar para si. E é este o desafio que se coloca para todos nós: criar uma morada possível, para não ficar eternamente presos a um berço, que é esplêndido apenas em nossas fantasias.
* Paulo Gleich é jornalista e psicanalista, membro da APPOA.
Extraído do sítio Sul21
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